sexta-feira, 18 de março de 2011

A Batalha do Passo



O rugido da magnífica fera era capaz de colocar força no coração dos valorosos e horror no cerne dos impúros Sua majestosa juba reluzia contra os poucos raios de sol que conseguiam vencer a cortina de trevas que dominava o céu. A mandíbula escancarada exibia presas imensas e embebedadas com fluídos escuros, o sangue daqueles que pecam contra o nome do Criador. Sob suas patas poderosas, dotadas de guarras brutais, a serpente se contorcia. Seu sibilar era quase mudo, mas o gotejar da boca manchava o chão, criando fissuras e maculando para sempre o solo. Ao som de brados de guerra, gritos de morte e trovões, as entidades se digladiavam numa das mais épicas batalhas de Belregard, a Batalha do Passo.

Foi no ano 968, depois da Ascensão, que Leoric arquitetou um ataque definitivo contra Belghor. Muitos anos haviam se passado e o sangue de soldados e inocentes nutria a terra na fronteira dos dois reinos. As planícies pedregosas do sul de Braden encontravam-se imundas, com o tom rubro a lhe manchar. Corvos amontoavam-se nas árvores secas que ladeavam o estreito que serve como entrada para Belghor, aquele mesmo caminho que, séculos atrás, levou os homens para fora do vale e lhes mostrou um mundo a ser conquistado. Leoric sabia, era seu dever devolver a terra natal dos homens à Belregard. A mancha dos Bövrar deveria ser aniquilada de uma vez por todas.

Não faziam-se mais fogueiras para os mortos, funerais honrosos eram raros, todos os homens que partiam para a guerra recebiam seus sacramentos, dos prelados de Braden, no momento em que empunhavam suas armas, na certeza de que suas almas já estivessem, dessa maneira, prometidas ao encontro com o Único. Um exército de mais de mil homens marchou pela planície silenciosa. Lanceiros, espadachins, arqueiros, cavaleiros, e o próprio rei. Os Leões Rubros, a elite daquele exército, cavalgava pelos flancos. Leoric, a frente da marcha, vestia-se apenas com um peitoral de aço, sem qualquer proteção no rosto, e algumas placas independentes pelas pernas e braços. Seu manto vermelho dançava ao sabor do vento. Vento este que trazia o cheiro da morte, na medida em que aproximavam-se do passo e avistavam as pilhas de cadáveres. Nenhum homem dizia qualquer palavra, o silencio era em respeito aos irmão caídos e a aqueles que ainda iriam cair.

O paredão rochoso, as montanhas que cercam Belghor, avolumavam-se diante daqueles guerreiros disposto a morrer. Aquela mera imagem, da montanha irresoluta e insensível, já seria capaz de intimidar os menos preparados fazendo o próprio Leoric suspirar. A verdade, por mais cruel que pudesse ser, era que o grande Vermelho estava velho. O sonho, do leão e da serpente, o assombrava a meses. Foi difícil para aquele homem aceitar, e entender, o chamado do Criador. O momento de seu último golpe havia chegado, vitorioso ou derrotado, mais um dos Puros deveria cair.

Diante da passagem, com seus cavaleiros alinhados, com escudos a postos e lanças preparadas, ele desembainhou sua longa espada forjada com aço do monte Halak e bradou diante do caminho, escurecida pela neblina que sempre cobre Belghor: Revela-te! Tu que te escondes num manto de treva e covardia. Que sorris e enganas aqueles a quem deves obediência. Venhas, filho da discórdia! Venhas e prove do meu aço, cão peçonhento! É hora do teu acerto de contas, para o regozijo do Criador!”

O vento que soprou não era guiado pela mão do Pai. Os homens que sobreviveram à batalha que veio a seguir contaram, com evidente o horror, a sensação de ter suas espinhas tocadas e torcidas por mãos fantasmagóricas naquele exato momento. Nenhuma exército surgiu da bruma além, nenhuma besta nefasta ou mesmo um maquinário devastador. A neblina cresceu, vertendo do chão como vapores em um lago aquecido de Rastov. Tamanha era a densidade que, num piscar de olhos, Leoric viu-se separado de seu exército e este perdeu o contato com seu líder.

Representação aproximada
de um Esguio
Antes que pudessem clamar pelo nome do rei, trôpegas figuras surgiram da névoa. Corpos alongados, esquálidos e extremamente brancos. Pareciam humanos, mas logo via-se que se locomoviam com mais membros que o normal. Três, ou até quatro, pernas ósseas movimentavam aqueles seres hediondos. Rostos sem face e braços sem mãos, mas afiados como a lâmina de qualquer espada. Era a primeira vez em que os Esguios surgiam no enfrentamento contra Belghor. Uniões profanas de guerreiros caídos, levando a desonra aos cadáveres daqueles que lutaram bravamente contra o reino negro. O caos instalou-se no exército, mas a carnificina foi mínima, se comparada ao destino do rei.

O caminho para Belghor encontrava-se aberto, Leoric soube que deveria seguir e enfrentar o seu destino. A cada passo um peso parecia alojar-se sobre os ombros do velho guerreiro. Mesmo sobre seu cavalo, a fadiga o consumia. Lembrou-se das histórias que os sacerdotes contavam, sobre os trolls que atacam as pessoas enquanto dormem, sentando-se sobre seus peitos para que fiquem imobilizadas e assim alimentam-se de seus medos, no momento em que o horror do despertar as atinge. Talvez fosse só isso, uma ilusão do mal para alimentar-se do medo do rei. Com a cabeça erguida, aproximou-se do passo.

Podia-se ouvir o som da água correndo a alguns metros abaixo da estreita passagem. Era frio e escuro, as rochas úmidas e enegrecidas dos paredões que ceravam o único cavaleiro não serviam de qualquer conforto. Ao longe, do outro lado da ponte de petra, larga o bastante para um homem apenas passar, ele viu uma trilha em meio as pedras. Antes que pudesse dar um passo, sentiu novamente aquele peso e um estranho vazio em seu peito. De olhos arregalados e respiração falha, Leoric sentiu-se abandonado. Era como se tudo aquilo que ele viveu, como um dos homens escolhidos pelo próprio Único para caminhar ao seu lado e ouvir suas lições, tivesse sido uma grande mentira, uma grande ilusão.

Ao invés de chorar, o rei gargalhou.

Já no chão, fora de seu cavalo, Leoric brandiu novamente sua lâmina. Ele podia ouvir. Podia sentir a terra vibrando ao passo daqueles milhares de homens que vinham em sua direção, sedentos por seu sangue. Talvez ele já estivesse morto, vivendo em seu próprio inferno. Afinal, morreu como viveu, um verdadeiro soldado que não retrocede diante da morte certa ou do abandono pleno. Ondas de homens corrompidos pelo poder cego da Sombra avançaram contra o leão de Braden, que rugiu, gargalhou e deu seu tributo a Deus. Se não com o sangue inimigo, com o seu próprio.




"Esta história foi contada por um corvo. Um corvo de nome Tiecelin.
Foi na corte de Dalanor, contou com calma, num drama sem fim.
Como ele soube? Verdade ou não, me disse que foi assim
Comeu os olhos do rei, mas reclamou, pois faltou alecrim."

- A Balada do Leão, autor anônimo. 


 

4 comentários:

  1. CARA!!! Que LOCA essa história!
    Esse Leonic é macho pra caramba.

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  2. Realmente, está é uma excelente história!

    Meus parabéns!

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  3. Ainda conta com uns belos erros de revisão, mas fio feliz que tenham gostado, meus nobres!

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