O
rugido da magnífica fera era capaz de colocar força no coração
dos valorosos e horror no cerne dos impúros Sua majestosa juba
reluzia contra os poucos raios de sol que conseguiam vencer a cortina
de trevas que dominava o céu. A mandíbula escancarada exibia presas
imensas e embebedadas com fluídos escuros, o sangue daqueles que
pecam contra o nome do Criador. Sob suas patas poderosas, dotadas de
guarras brutais, a serpente se contorcia. Seu sibilar era quase mudo,
mas o gotejar da boca manchava o chão, criando fissuras e maculando
para sempre o solo. Ao som de brados de guerra, gritos de morte e
trovões, as entidades se digladiavam numa das mais épicas batalhas
de Belregard, a Batalha do Passo.
Foi
no ano 968, depois da Ascensão, que Leoric arquitetou um ataque
definitivo contra Belghor. Muitos anos haviam se passado e o sangue
de soldados e inocentes nutria a terra na fronteira dos dois reinos.
As planícies pedregosas do sul de Braden encontravam-se imundas, com
o tom rubro a lhe manchar. Corvos amontoavam-se nas árvores secas
que ladeavam o estreito que serve como entrada para Belghor, aquele
mesmo caminho que, séculos atrás, levou os homens para fora do vale
e lhes mostrou um mundo a ser conquistado. Leoric sabia, era seu
dever devolver a terra natal dos homens à Belregard. A mancha dos
Bövrar deveria ser aniquilada de uma vez por todas.
Não
faziam-se mais fogueiras para os mortos, funerais honrosos eram
raros, todos os homens que partiam para a guerra recebiam seus
sacramentos, dos prelados de Braden, no momento em que empunhavam
suas armas, na certeza de que suas almas já estivessem, dessa
maneira, prometidas ao encontro com o Único. Um exército de mais de
mil homens marchou pela planície silenciosa. Lanceiros, espadachins,
arqueiros, cavaleiros, e o próprio rei. Os Leões Rubros, a elite
daquele exército, cavalgava pelos flancos. Leoric, a frente da
marcha, vestia-se apenas com um peitoral de aço, sem qualquer
proteção no rosto, e algumas placas independentes pelas pernas e
braços. Seu manto vermelho dançava ao sabor do vento. Vento este
que trazia o cheiro da morte, na medida em que aproximavam-se do
passo e avistavam as pilhas de cadáveres. Nenhum homem dizia
qualquer palavra, o silencio era em respeito aos irmão caídos e a
aqueles que ainda iriam cair.
O
paredão rochoso, as montanhas que cercam Belghor, avolumavam-se
diante daqueles guerreiros disposto a morrer. Aquela mera imagem, da
montanha irresoluta e insensível, já seria capaz de intimidar os
menos preparados fazendo o próprio Leoric suspirar. A verdade, por
mais cruel que pudesse ser, era que o grande Vermelho estava velho. O
sonho, do leão e da serpente, o assombrava a meses. Foi difícil
para aquele homem aceitar, e entender, o chamado do Criador. O
momento de seu último golpe havia chegado, vitorioso ou derrotado,
mais um dos Puros deveria cair.
Diante
da passagem, com seus cavaleiros alinhados, com escudos a postos e
lanças preparadas, ele desembainhou sua longa espada forjada com aço
do monte Halak e bradou diante do caminho, escurecida pela neblina
que sempre cobre Belghor: “Revela-te!
Tu que te escondes num manto de treva e covardia. Que sorris e
enganas aqueles a quem deves obediência. Venhas, filho da discórdia!
Venhas e prove do meu aço, cão peçonhento! É hora do teu acerto
de contas, para o regozijo do Criador!”
O
vento que soprou não era guiado pela mão do Pai. Os homens que
sobreviveram à batalha que veio a seguir contaram, com evidente o
horror, a sensação de ter suas espinhas tocadas e torcidas por mãos
fantasmagóricas naquele exato momento. Nenhuma exército surgiu da
bruma além, nenhuma besta nefasta ou mesmo um maquinário
devastador. A neblina cresceu, vertendo do chão como vapores em um
lago aquecido de Rastov. Tamanha era a densidade que, num piscar de
olhos, Leoric viu-se separado de seu exército e este perdeu o
contato com seu líder.
Representação aproximada de um Esguio |
Antes
que pudessem clamar pelo nome do rei, trôpegas figuras surgiram da
névoa. Corpos alongados, esquálidos e extremamente brancos.
Pareciam humanos, mas logo via-se que se locomoviam com mais membros
que o normal. Três, ou até quatro, pernas ósseas movimentavam
aqueles seres hediondos. Rostos sem face e braços sem mãos, mas
afiados como a lâmina de qualquer espada. Era a primeira vez em que
os Esguios surgiam no enfrentamento contra Belghor. Uniões
profanas de guerreiros caídos, levando a desonra aos cadáveres
daqueles que lutaram bravamente contra o reino negro. O caos
instalou-se no exército, mas a carnificina foi mínima, se comparada
ao destino do rei.
O
caminho para Belghor encontrava-se aberto, Leoric soube que deveria
seguir e enfrentar o seu destino. A cada passo um peso parecia
alojar-se sobre os ombros do velho guerreiro. Mesmo sobre seu cavalo,
a fadiga o consumia. Lembrou-se das histórias que os sacerdotes
contavam, sobre os trolls que atacam as pessoas enquanto dormem,
sentando-se sobre seus peitos para que fiquem imobilizadas e assim
alimentam-se de seus medos, no momento em que o horror do despertar
as atinge. Talvez fosse só isso, uma ilusão do mal para
alimentar-se do medo do rei. Com a cabeça erguida, aproximou-se do
passo.
Podia-se
ouvir o som da água correndo a alguns metros abaixo da estreita
passagem. Era frio e escuro, as rochas úmidas e enegrecidas dos
paredões que ceravam o único cavaleiro não serviam de qualquer
conforto. Ao longe, do outro lado da ponte de petra, larga o bastante
para um homem apenas passar, ele viu uma trilha em meio as pedras.
Antes que pudesse dar um passo, sentiu novamente aquele peso e um
estranho vazio em seu peito. De olhos arregalados e respiração
falha, Leoric sentiu-se abandonado. Era como se tudo aquilo que ele
viveu, como um dos homens escolhidos pelo próprio Único para
caminhar ao seu lado e ouvir suas lições, tivesse sido uma grande
mentira, uma grande ilusão.
Ao
invés de chorar, o rei gargalhou.
Já
no chão, fora de seu cavalo, Leoric brandiu novamente sua lâmina.
Ele podia ouvir. Podia sentir a terra vibrando ao passo daqueles
milhares de homens que vinham em sua direção, sedentos por seu
sangue. Talvez ele já estivesse morto, vivendo em seu próprio
inferno. Afinal, morreu como viveu, um verdadeiro soldado que não
retrocede diante da morte certa ou do abandono pleno. Ondas de homens
corrompidos pelo poder cego da Sombra avançaram contra o leão de
Braden, que rugiu, gargalhou e deu seu tributo a Deus. Se não com o
sangue inimigo, com o seu próprio.
"Esta
história foi contada por um corvo. Um corvo de nome Tiecelin.
Foi
na corte de Dalanor, contou com calma, num drama sem fim.
Como
ele soube? Verdade ou não, me disse que foi assim
Comeu
os olhos do rei, mas reclamou, pois faltou alecrim."
- A Balada do Leão, autor anônimo.
CARA!!! Que LOCA essa história!
ResponderExcluirEsse Leonic é macho pra caramba.
Muito boa história! Parabéns!
ResponderExcluirRealmente, está é uma excelente história!
ResponderExcluirMeus parabéns!
Ainda conta com uns belos erros de revisão, mas fio feliz que tenham gostado, meus nobres!
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