Com a elevação da raça humana ao devido lugar, como escolhidos do Deus Único, pudemos iniciar nossa marcha contra tudo aquilo que nos era errado. O primeiro passo foi atacar diretamente os Belinarem que habitavam as áreas florestais mais próximas da cidade de Virka, ainda muito jovem nesse momento. Não pense, porém, que atacamos às cegas, antes da primeira flecha ser disparada contra, nós tivemos uma verdadeira corrida armamentista e não só no que diz respeito ao aço, mas também no que tange ao conhecimento de nosso inimigo.
Apesar de nos causar certa vergonha, sabemos que nem todos nutriam dos mesmos ideais iluminados e, assim, compactuavam com aquelas criaturas nefastas, algumas vezes até enfeitiçados pelas mesmas. Foram estas pessoas que o Conclave de Virka buscou para tirar informações a respeito de nossos inimigos. Não seria errado dizer que este episódio marca um plano do que viria a ser conhecido como Tribunal do Ofício, séculos depois, já que as medidas tomadas pelos sacerdotes não eram consideradas nada “humanas” para os acusados. É de se compreender, claro, que não havia outra maneira.
Tirados de suas casas e submetidos a sessões longas de interrogatório, tendo ainda que suportar os novos dons recém-adquiridos pela investidura do Único em todos nós, não foram poucos os que tiveram suas formas carnais aquecidas pelo fogo purificador. É graças ao trabalho destes sacerdotes, e aos sacrifícios daqueles mortais, que sabemos um pouco sobre os Selvagens hoje. Lembrando que estas atitudes foram tomadas antes do confronto direto, remetendo ao período Antes da Ascensão.
Dos registros de Malash, datados de poucos meses antes da guerra: “Os Belinaren são surpreendentes. Sua agilidade dentro do terreno ao qual são familiares rivaliza com a dos melhores batedores de Virka. Compartilham de uma estranha forma de comunicação quase intuitiva, que pede pouco contato visual para que seja compreendida. Tentamos submeter alguns exemplares capturados a certos experimentos, para melhor nos prepararmos para a guerra. Os resultados foram duvidosos, mas parece que esse vínculo faz parte de seu rito de passagem para a fase adulta, que ocorre com quase um século de vida. É até cômico pensar como estes seres podem demorar tanto para considerarem-se homens feitos. Esta última informação eu consegui de Örn, que foi retirado de sua tenda nesta manhã, acusado de contato excessivo com os inimigos. Ele era um dos enviados para conseguir informações, mas acabou deixando-se levar. Não foi tão difícil tirar as respostas dele.”
Quando estávamos prontos para atacar, toda a floresta que circundava Virka havia sido mapeada e sabíamos também dos focos onde os grupos familiares de Belinaren se reuniam. Depois de cinco meses de investidas constantes, toda a área estava limpa. Crânios lânguidos eram exibidos em estacas de madeira nas cercanias da cidade e a extração da madeira teve início, de forma muito mais acelerada, já que não existiam mais os perigos de antes e mesmo os animais selvagens pareciam ter abandonada aquela região. Nestes tempos, diante da primeira vitória humana contra os Selvagens, nomeamos um soberano entre os principais seguidores do Único e seu sangue marcou a primeira dinastia no poder em Virka, tratava-se de Bövrar, o Puro.
O governo daquele que ficou conhecido como Bövrar I foi duradouro, estendendo-se por cinquenta anos depois da primeira vitória contra os Belinarem. Apesar de sempre ter sido um defensor ferrenho da limpeza do mundo, Bövrar concentrou-se em colocar Virka como o centro de todos os grandes feitos da humanidade. Dessa forma ele não pensou duas vezes em explorar a mão de obra das massas mais baixas em instrução e treinamento, e ainda dividiu a sociedade em três castas básicas, um modelo que seguimos até os dias de hoje, apesar dos atritos atuais:
No topo da hierarquia havia a figura do Eleito, aquele iluminado o bastante para receber instruções diretas vindas do nosso próprio Deus, a ele estavam submetidos todo o restante da humanidade. Vale lembrar que, neste momento, os contatos entre os habitantes de Virka e aqueles que ficaram em Belghor era mínimo. Abaixo do Eleito estavam os Oradores, um grupo seleto dedicado à adoração e execução das ordens divinas que eram apoiados pela casta seguinte, a d'Aqueles que Lutam, os mais abastados e instruídos. Por fim, Aqueles que Trabalham, a grande massa campesina que, mesmo tendo dado suas vidas no primeiro conflito, não fez o bastante para conquistar um lugar de respeito entre os demais. Por mais que hoje tenhamos algumas diferenças, ou mesmo divisões, entre estas castas a estrutura continua a mesma.
Com o governo de Bövrar I tendo sido voltado para a construção de um verdadeiro Império à imagem da vontade do Criador, coube ao sucessor de Bövrar dar cabo de tudo que este planejou. A máquina estava criada. Com a vitória contra os Belinaren, tivemos a chance de aprender muito sobre o uso da furtividade no campo de batalha, o emprego de armas de longo alcance e estratégias simples que serviam muito bem para tornar o inimigo um alvo fácil, confundido com a sagacidade de comandantes que souberam aprender estas lições. A área ao redor de Virka já havia tornado-se uma planície, sem mais sinais de florestas e bosques a longas distâncias.
Bövrar II, filho daquele que tornou nosso sonho realidade, guiou a humanidade a novas conquistas. Sob seu punho de ferro marchamos paragens desabitadas, desbravamos pântanos profanos e purificamos o seio da floresta. A linhagem dos Bövrar parecia realmente abençoada, enquanto o primeiro membro da dinastia havia morrido com cerca de oitenta anos, seu filho caminhou pela terra por dez anos a mais. Era como se nós estivéssemos tomando aquilo que os Belinaren mais apreciavam, sua longevidade. O reinado do II não foi apenas de conquistas, infelizmente, sua natureza não era tão virtuosa quanto à do pai e mais de uma vez a nobreza mostrou-se descontente com certas atitudes tomadas no calor da batalha. Fosse com o aprisionamento de dezenas de cativos Belinaren do sexo feminino, que o Eleito alegava ser parte fundamental para suas descobertas pessoais, a filhos bastardos que ele acabou por fazer com toda a sorte de mulheres que lhe fosse agradável aos olhos.
O maior problema com a sucessão de Bövrar II, que morreu de maneira misteriosa, foi quanto a estes filhos bastardos. Uma verdadeira guerra civil tomou conta da orgulhosa Virka. Os grupos mais influentes tomaram partidos de algumas das “crianças” que mais lhe favorecessem e ao longo de quarenta anos o trono foi ocupado por indignos que não duravam muito tempo, já que desagradavam a maior parte da população. Um deles, chamado Larsen, não foi deposto, mas declarou estar enojado com a forma como a cidade de seus antepassados estava sendo tratada e, junto com seu secto de fiéis, partiu rumo ao norte.
Os Oradores de hoje marcam esse período conturbado como a Guerra das Crianças, usando uma evidente conotação pejorativa para desmerecer aqueles que estragaram o trabalho de Bövrar I. Estes mesmos eruditos apontam a culpa do caos nas atitudes do segundo Eleito, lançando dúvidas se ele realmente era capaz ou não de ouvir o chamado do Criador. Esta situação caótica só teve fim em 220 DA, quando os Oradores voltaram a assumir o controle da cidade, deixando as disputas pessoais de lado para que todo aquele esforço não tivesse sido em vão. Sem nomear nenhum Eleito entre eles, Virka seguiu por mais um longo tempo num governo ditado por este grupo de homens iluminados, tentando restaurar a paz dentro da cidade.
Larsen e seus homens partiram para o norte, até então inexplorado, e não tiveram qualquer descanso em sua jornada para levar a verdade do Criador. Homem extremamente religioso, Larsen não deixava que seus soldados fraquejassem um só segundo, senhor de uma oratória de causar inveja a qualquer Eleito, foram suas palavras que deram força àqueles homens, como retirado dos primeiros registros da biblioteca de Rastov, datado de 320 DA, por um autor anônimo: “Para aqueles que veem no branco a cor da paz e da plenitude, os convido a visitarem as espetes de Rastov. Os que pisam nesta neve enganosa, capaz de engolir um homem inteiro, descobrirão que o branco de nada tem de puro. O branco trás a morte e a cada passo que dávamos ao longo do estreito de rochas gélidas, um homem titubeava para cair... Mas nós não podíamos, tínhamos de resistir. O futuro dependia de cada um de nós e no momento de maior fraqueza de cada um ele estava lá. Larsen, o Vermelho apoiava-nos como um verdadeiro comandante. Seu discurso era capaz de inflamar os corações, derreter o gelo eterno do norte e trazer a paz aos que sofriam. Não houve homem na legião de andarilhos moribundos que não ouviu um sermão e no momento em que ele próprio precisou, foram os ombros de mil soldados que ele encontrou para se apoiar. Foi só assim que sobrevivemos e só assim que sobreviveremos”.
Os feitos da Legião Fantasmagórica são narrados de forma detalhada até hoje pelos habitantes mais arraigados do Baronato de Rastov. Concordando ou não, Larsen foi capaz de fazer a humanidade cruzar uma nova barreira e, uma vez estabelecidos, criaram as bases para uma nova frente de combate contra os Selvagens. Apesar dos Belinaren não terem sido eliminados em sua totalidade, até então, outra raça de seres bestiais passou a ser hostil a nossa presença. Tratava-se dos belicosos Dwethären, senhores das rochas e dos metais. Habitantes das frias montanhas do norte, reis em seus salões subterrâneos e portadores do segredo de forjaria que faria a humanidade dar um verdadeiro salto no que diz respeito à maneira de guerrear. Segundo o exemplo do que foi feito em Virka, Larsen tentou uma aproximação pacífica com os Selvagens, guardando planos secretos de usar as armas contra os próprios. A princípio isso deu certo, até a infeliz morte daquele homem que deu esperanças a tantos outros. Larsen foi morto por um Dwethären enviado a sua corte com embaixador para manter a paz entre os povos. Envenenado com carne de baleia, o Vermelho não parecia ser nada do que havia sido um dia, debruçado sobre a mesa em convulsões e espasmos, tentando agarrar-se ao que lhe sobrava de vida. Apesar disso, não morreu antes de degolar o traidor.
Excelente. Gostei muito da idéia por trás da Legião Fantasmagórica.
ResponderExcluirEste material está cada vez melhor!
Mano, eu o li enquanto ia pra facu.
ResponderExcluirSimplesmente fodástico. Muito bom mesmo. Sua escrita é fluída e seu conhecimento de palavras enriquece o texto. Sem sombra de dúvida, é um prazer tê-lo na equipe.
Continue escrevendo
Obrigado novamente, senhores. Lembrando que críticas e sugestões são sempre bem vindas. Espero que curta um pouco mais destes "fantasmas do norte", Odin!
ResponderExcluirAbraço!