terça-feira, 17 de maio de 2011

Cortejo Sombrio – O Último Homem de Pé


Conta a lenda da Ausência que, três dias antes da vinda do Criador, sacerdotes perderam qualquer contato com as emanações do Pai. Sentiram-se abandonados, desgraçados e desamparados. Alguns resistiram, vendo naquilo um teste de força, mas outros sucumbiram à loucura. Estes segundos foram tocados pela Sombra que desceu ao mundo junto do Criador, como sua luz não podia existir sem aquela escuridão, os mais fracos e descrentes foram atraídos pelas suas ilusões e enveredaram-se num caminho de pecado sem volta. Um destes homens foi um igslavo, recém-convertido, de nome Mikhailo.

Servindo como mercenário para os belghos de Rastov, Mikhailo aceitou a verdade do Único como sua nova fé, abandonando seus deuses heréticos e renegando seu passado como um selvagem da Taiga Branca. Foi treinado nas artes dos homens civilizados, aprendeu a lutar, ler, escrever e orar. Onde muitos de seus irmãos de sangue viam apenas mais um obstáculo para serem aceitos naquela nova sociedade, Mikhailo sentiu-se verdadeiramente tocado pela Fé no Criador. Rapidamente deixou as armas em segundo plano, habitando o claustro monástico e dedicando-se a profundas meditações, como se tivesse pressa em recuperar todos os anos que perdeu direcionando sua fé a entidades inexistentes.

Pouco antes da Ausência, Rastov estava enfrentando problemas no norte o no sul. Os Dwerthären já não eram uma ameaça no norte, mas os bárbaros das montanhas, os vogos, continuavam suas hostilidades abertas para com tudo aquilo que fosse civilizado. E no sul eram os vihs que pressionavam a castelania, dando seus primeiros sinais de insurreição. Completamente dedicado as suas orações, Mikhailo não parecia disposto a investir com seus irmãos igslavos contra aqueles que também partilhavam parte de seu sangue, os vihs. Os homens de Rastov avançaram contra o sul no primeiro dia da Ausência.

Pego de surpresa, Mikhailo só sentia o vazio dentro de si. Novamente as descrições mais encontradas nos registros destes dias repetem a expressão que reflete a sensação de “faltar o chão, as paredes e o teto, é como perder-se na escuridão sem fim”. Apesar de ser um devoto fanático, o igslavo não tinha a confiança dos homens mais capacitados dentro da igreja de Rastov, por isso viu-se sozinho para enfrentar aquele sentimento avassalador. Acreditando que sua escolha de não ter ido à guerra desagradou a Deus, agarrou seu velho e pesado aço e partiu para o combate.

Naquele momento ele sentiu-se completo outra vez. A cacofonia de vozes lamentando, praguejando e chorando eram abafadas. Só ouvia o som do aço batendo contra a carne e o guinchado dos homens, fazendo-os parecerem porcos no abatedouro. Mikhail sorria enquanto praticava sua dança mortal, matando a todos que cruzavam seu caminho, fossem homens de Rastov ou não. Sentindo o toque da Sombra, enganado, o igslavo desejava apenas manchar a Taiga Branca de rubro e era como se nunca tivesse deixado de praticar o combate. Entendeu que ali estava sua vocação e que para recuperar o tempo que novamente perdeu, deveria ser o último homem de pé.

Assim foi.

Nos dois dias que se seguiram de Ausência, Mikhail continuou ceifando a vida de qualquer homem que encontrasse em seu caminho. Dizem que ele alimentou-se da carne dos mortos e que nem os corvos conseguiam encontrar o que devorar. A partir de então, ao avistar-se uma revoada de asas negras, as pessoas de bem buscam um abrigo seguro e baixam suas armas, pois sabem que os corvos seguem Mikhail de perto, numa tentativa de tirarem maior vantagem no festim.

3 comentários:

  1. Pelas minhas barbas! Excelente história!

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  2. Obrigado pelos comentários, meus nobres. Esse "cortejo sombrio" tem o objetivo de servir como sementes de histórias mesmo.

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