domingo, 24 de outubro de 2010

Para Onde Vão os Mortos?

Habraud ajeitou a manta que lhe cobria os joelhos e limpou a garganta depois daquele longo discurso, onde falou sobre antigas lendas e heróis míticos. À sua frente, logo ao lado da lareira que ardia para lhes aquecer, sentavam-se crianças de menos de dez anos. Todas tinham os olhos vidrados no velho escaldo que, por si só, já era um atrativo e tanto. Harbraud não era um homem comum, ele pertencia a raça dos vanyrians, mortais que tem o sangue dos deuses correndo em suas veias.

E então, o que acharam da história de Sigurd?” perguntou ele, para sua plateia atenta. As crianças se entreolharam e cochicharam, já brigando para saber quem seria Sigurd e quem seria Fafnir na próxima brincadeira de luta. O velho riu satisfeito, até que uma das vozes infantis ergueu-se mais que as outras, “Habraud... Para onde foi Sigurd depois de morto?”. “Boa pergunta, filho de Norkis. Sigurd foi para onde vão todos os guerreiros honrados. Valhalla, o salão de Odin. Lugar onde treina, até os dias de hoje, para lutar novamente quando o Ragnarok se aproximar”.

Uma nova onda de comentários surgiu logo depois daquela afirmação e Harbaud percebeu que um dos garotos, o filho de Nár, estava um pouco emburrado. “O que foi, pequeno?”, perguntou o velho. O menino, arredio, fez um pouco de birra, mas acabou confessando, “O senhor fala de heróis... Mas para onde irá meu pai? Ele é camponês, nunca segurou em uma arma... Ele vai pra Niflheim?”. Novamente o escaldo não conteve o riso, sentindo que sua missão fora cumprida, já que questionamentos surgiram em mentes tão infantis. “Não, meu nobre filho de camponês. Seu pai irá para junto de Thor! É ele quem acolhe os homens de bem, que levam suas vidas de forma honrada e produtiva”. Com toda a audiência satisfeita, Habraud decidiu falar sobre o destino daqueles que morrem.



Esta, provavelmente, é uma pergunta sem resposta. Pragmáticos ou não, todos veem-se curiosos com os próprios destinos quando este fatídico dia chega. A religião é parte fundamental para preencher as lacunas deixadas por estas dúvidas e não seria diferente com os vikings. A resposta mais clara e fácil é do conhecimento de todos: os bons vão para o Valhalla e os maus para Niflheim. Mas a coisa não para por ai.

Segundo o poema Grímnismál, nem todos os guerreiros mortos vão para o Valhalla. Metade daqueles que caem em batalha estão destinados ao Fólkvangr, sob a guarda de Freyja. Lá eles gozam das mesmas regalias que seus irmãos sob a tutela de Odin, contando ainda com a presença inspiradora da própria deusa, que vive em seu salão Sessrúmnir. Este fato nos revela uma faceta que não seria esperada, em uma deusa como Freyja.

Para aqueles que não lutaram, mas levaram vidas honrosas e produtivas, é reservado Þrúðheimr, o reino de Thor. Segundo o porme Hárbarðsljóð, em seu salão, Bilskírnir, o deus do trovão recebe a todos os homens simples, o que explicaria sua popularidade que chega a ser maior que a do próprio Odin. O símbolo mais usado entre os guerreiros, seja para a proteção ou para o ataque, é o martelo de Thor, Mjölner, este fato exemplifica muito bem a fama do deus. Ainda sobre as pessoas simples, o Gylfaginning cita o lugar das mulheres solteiras ao lado de Gefjon no Vinglóf. Assim como em Gimlé, onde vivem os homens sábios, no salão que também é regido por Odin.

O Sonatorrek fala sobre os que morrem sem a chance de lutar no mar e dessa forma vão parar na companhia de Aegir e sua esposa Rán. Já os navegantes honrados, vão para Nóatún, o lar de Njörd. Por fim nós temos Náströnd, a praia de Niflheim. Para lá vão os homens que quebraram seus juramentos e que agiram com covardia em suas vidas.

Alguns outros locais de destaque, que poderiam ser citados, são: Breidablik, o salão de Balder em Asgard, onde nada impuro pode entrar. Ókólnir é o salão de um jötun, Brimir, onde bebe-se e festeja por toda a eternidade e, por fim, um lugar que confunde-se com o nome de seu fundador: Sindr, o salão dos anões em Nidavellir.

As descrições destes locais são sempre marcadas por exageros. Centenas de aposentos, ouro e armas em abundância. Mas como fazer tudo isso ter sentido em um RPG como Vikings: Guerreiros do Norte? Nós sabemos que os nove mundos tornaram-se apenas um, depois da abertura das Runas, desse modo, não parece mais existir um “paraíso inalcançável” para os homens fantasiarem. Asgard está “logo ali”! É dito, no primeiro livro da série, que a ilha dos deuses conta com uma espécie de proteção que impede a visita de qualquer um não convidado. Já no segundo livro, Reinos de Pedra, nós vemos uma comitiva de anões sendo recebida, onde Loki interfere mais uma vez para executar seus planos. Nesta segunda narrativa podemos ter ideia de que a ilha é realmente grande, talvez maior do que é apresentada no mapa.

Tenho uma visão particular de que Asgard seja uma terra dividida em pequenos paraísos. Como pudemos constatar nas delimitações acima, é como se cada divindade tivesse seu pequeno reino e um salão em especial, onde reúnem seus eleitos. Posso imaginar a existência de um grande pomar, onde Idun cuida das maçãs que mantém a longevidade dos deuses. O velho salão onde foi travado o debate entre os Aesir e Vanir, ao fim da guerra e onde, através da saliva que voou das bocas nervosas, nasceu Kvasir.

A ideia de que exista uma “vida cotidiana” em Asgard não me é mais tão estranha. Afinal, os mortos comem e bebem. Não faltam citações quanto a isso. Mesmo os animais lendários precisam. Se não me falha a memória, o único a não precisa se alimentar é Odin, tanto que ele da a carne que lhe é ofertada para seus dois lobos, Geri e Freki. Não seria muito errado dizer que, a única limitação do defunto é não poder sair de Asgard sem a ordem de um deus?

Mas, como tudo nas lendas, é difícil dar uma resposta certa. Cito aqui o famoso Baldrs Draumar, o poema que fala sobre a trágica morte de Balder, o mais amado dos deuses. Ele vai parar em Niflheim. Mesmo que este episódio ainda não tenha acontecido no cânone oficial do cenário, é algo a se pensar para o futuro. Ele teria ido para o reino dos covardes por conta das artimanhas de Loki? Este seria o lugar reservado aos deuses mortos, não importa que tipo de linha seguam? Ou ainda, usou-se a visão de que Balder não morreu lutando e por isso não merecia um “lugar melhor”, valendo-se da clássica dicotomia Valhalla x Niflheim?

Fica ainda uma dúvida, se não existem mais barreiras entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, como dá-se o “comércio das almas”? Isso poderia ser respondido com o uso daquela mesma barreira que cerca Asgard. Talvez além dela as leis não sejam mais as mesmas e, assim sendo, vivos e mortos podem “conviver”.

É uma questão complexa e eu não me propus a respondê-la. Escrevi o artigo com o intuito de trazer esse assunto que é sempre interessante de ser discutido.

2 comentários:

  1. Este é um assunto deveras complicado, em que as histórias variam muito conforme suas fontes. A morte de Balder, por exemplo, é algo extremamente difícil de ser explicado e definido.

    De qualquer forma, este foi um ótimo pergaminho (logo lerei os outros)

    ResponderExcluir
  2. Agradeço o comentário, meu nobre!

    Mas então, sobre a dificuldade em determinar o que é fato ou não, penso da mesma forma que você. É difícil dar uma resposta para algo que é baseado em lendas. Mas no âmbito do RPG, eu penso que uma resposta precisa se faz necessária, já que toda a mítica é palpável para os envolvidos naquele mundo em particular.

    Por isso apresentei algumas suposições, quanto ao destino sombrio de Balder. Existe ainda a chance de que as acusações de Loki fossem verdadeiras, quando acusa Balder de ser covarde. Perceba que temos duas versões do mesmo deus, versões que costumamos confundir. Na de Snorri, dos Edda, Balder é apresentado como um deus puro e de luz. Na versão de Saxo, do Gesta Danorum, o deus vem na forma de um guerreiro.

    Pensando na primeira representação, de Balder como um deus de pureza, eu sou tentado a pensar que isso poderia ser confundido com uma covardia, motivo pelo qual mereceu o Nifflheim. Mas isso é apenas uma tentativa minha de fazer a coisa funcionar num "preto no branco", algo que é impossível. Mais um motivo pelo qual eu gosto desse cenário, Vikings: Guerreiros do Norte, os autores foram "forçados" a fechar os olhos pra muita coisa, em nome de linearidade, e funcionou muito bem!

    Acabei escrevendo de mais, fico por aqui!

    ResponderExcluir